A penúltima vez que levamos o Léo ao dentista, ele precisou ser contido para que a profilaxia fosse realizada. Uma vez criança de 7 anos, numa cadeira sendo contida por 4 adultos para que a intervenção fosse feita. Ainda que todos os envolvidos (o dentista, sua ajudante, eu e o pai de Leo) tenham sido o mais amorosos possível, não tem como sair disso sem traumas.
Eu, que sou adulta neurotípica, sai de lá com traumas, com medo, insegura de que isso se tornasse uma situação inevitável, como tem sido para meu irmão até o momento. Meu irmão é pessoa cega, autista nível 3 de suporte e com deficiência intelectual, hoje com 37 anos. É desesperador quando o Nélio tem que ir ao dentista. E o sofrimento é visível nele e em todos que o acompanham no dia para contê-lo.
Na última consulta, uma irmã precisou subir em cima dele para que a dentista pudesse fazer os procedimentos. E, quando digo contenção, estou falando de pessoas que o amam: mãe, pai, irmã, às vezes cunhados, e de uma profissional de ponta, que tem tentado fazer o melhor que pode com os poucos recursos que o sistema público de saúde oferece. E viva o SUS! Com todos os problemas que precisamos resolver, mas é importante dizer que nunca conseguimos encontrar na rede privada dentista que aceitasse atender meu irmão. Em geral mesmos profissionais com habilitação para esse cuidado não possuem consultórios compatíveis.
Então, por toda a minha vivência, eu sabia que uma intervenção traumática com contenção poderia ser o início de uma triste e dolorosa história para o Leo.
Por isso procurei referência de um dentista que pudesse atender meu filho, tendo capacitação para fazer isso de uma forma que fosse a menos invasiva possível. Vamos combinar que se até para nós, adultos neurotípicos, sentar-se na cadeira do dentista com aquele motorzinho na boca pode ser aterrorizante, imagina para uma criança autista e com TOD, como é o caso de Leo.
A espera muitas vezes prolongada na recepção apertada, em geral com pessoas aguardando e por vezes conversando, o barulho do telefone tocando, a atendente falando ao telefone ou com os pacientes, o barulho dela digitando e o da impressora… Tudo isso pode ser uma tortura para uma pessoa autista.
Soma-se a isso aquela obrigatoriedade de ter um comportamento adequado, que na maior parte das vezes significa aguardar sentado e sem mexer nas coisas do consultório. E, ainda, na sala do dentista, aquela “branquitude” que chega doer os olhos, o dentista também de branco e de jaleco, calado na maior parte do tempo e a ajudante também. E não bastasse isso, a criança ainda precisa se deitar numa cadeira que suspende e abaixa sem que ela tenha controle e para piorar tem uma luz forte constantemente no seu rosto.
Depois de uma pesquisa com algumas famílias e, convencida, principalmente, depois da indicação de uma odontopediatra maravilhosa, decidimos buscar o Dr. Lucas (o “Super Dentista”).
Sabe aquele espaço hostil a qualquer pessoa que em geral os consultórios de dentistas são? Na clínica dele não existe! Aquele monte de “proibicionismo”, também não. Lá o “não pode” é falado só quando de fato é necessário. Aqueles jalecos nem um pouco convidativos para a criança, lá viraram capas de super-heróis.
O atendimento é realizado tendo em conta o bem-estar da criança na sua integralidade e não só com o foco na saúde bucal. Lá importa que a criança esteja feliz, receptiva, que permita tocar no seu corpo, mexer na sua boca, que seja protagonista do seu autocuidado o máximo que puder, ainda que isso signifique precisar de ajuda total.
Lá o paciente tem um horário que é respeitado. A recepção é espaçosa e silenciosa. A criança tem a liberdade de pular, brincar, ficar em pé ou sentada enquanto espera ser chamada.
No caso do Leo, a capacidade de espera é reduzida ainda e aqui fiz o registro dos poucos minutos que ele esperou. Enquanto isso, ele teve a chance de mexer nos materiais, cuidadosamente preparados para as crianças, com livros didáticos sobre a escovação, brinquedos de blocos, super-heróis, livrinhos de histórias sociais… Leo adorou, chegou e já foi mexendo em tudo.
Entrou na sala antes de ser chamado. Corri para segurar, mas fui orientada de que lá ele podia explorar o espaço. E assim foi! Ele entrou, viu tudo, mexeu onde podia e onde não podia foi direcionado a fazer outra coisa.
E, para a surpresa de todos, ou talvez só minha (kkk), ele já foi se deitando na cadeira do dentista e abrindo o “bocão de jacaré”.
Ah! Que emoção vivenciar isso. Que alegria saber que o presente e o futuro de Leo podem ser diferentes ao que o meu irmão teve acesso até o momento. Que alegria ter esperança de que o Leo algum dia vai escovar seus dentes sozinho, ainda que com nossa ajuda para caprichar como o Dr. Lucas gosta de instruir.
Hoje foi o segundo atendimento de Leo. No primeiro, foi realizada a profilaxia e até o flúor foi aplicado e quando saímos de lá, Leo passou vários dias falando do tio Lucas.
Hoje, quando falei ao Leo que iríamos no Dr. Lucas, a alegria dele foi enorme. Hoje, o dia foi de aprender sobre as etapas da escovação. E, para isso, o Dr. Lucas usou da magia da escova que brilha no escuro. Leo quando viu simplesmente ficou encantado. Curioso do jeito que é, quis pegar logo. E cumpriu todas as etapas certinho.
Foi lindo, emocionante e gratificante ver o Leo ali envolvido no atendimento como protagonista do processo, sem contenção, sem ninguém o obrigar. Ele estava ali feliz, respondendo aos comandos, interagindo, tentando formular o diálogo, olhando-se no espelho, percebendo-se no mundo.
E ao final, mais uma vez protagonista, pôde escolher seu prêmio, saiu de lá com sua flauta fazendo o máximo de barulho que podia.
Torço para que mais profissionais como o Dr. Lucas se capacitem no atendimento de pessoas com deficiência intelectual e autismo. Torço para que sua prática seja o comum de se encontrar. Torço para que haja esses profissionais disponíveis no SUS onde a maior parte das pessoas com deficiência intelectual e autismo estão.
Não é sobre fazer propaganda para o dentista, que aliás acabei de conhecer (2° atendimento). É sobre a necessidade de debatermos a humanização no atendimento odontológico de pessoas com deficiência e autismo. É sobre valorizar o trabalho de um profissional que tem buscado construir uma prática diferencial.
Obrigada Dr. Lucas, Rilari e equipe. Vocês foram sensacionais. Em maio nos vemos, isso se Leo aguentar esperar até lá para voltar, porque ele foi no carro falando da sua tarde. Ele foi feliz no trajeto para casa tocando sua flauta e isso por si só já é uma grande recompensa para nós de todo esforço que temos feito para que ele possa ter o melhor tratamento sempre.
Depoimento de Célia Barbosa, mãe do Leonardo Bruce, criança de 8 anos, autista com TOD.
Célia e Leo
Instagram: @celiabarbosadasilvapereira